quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Com 3 ações de erro médico por hora, Brasil vê crescer polêmico mercado de seguros.

Com 3 ações de erro médico por hora, Brasil vê crescer polêmico
mercado de seguros. Segundo o CNJ, foram pelo menos 26 mil processos referentes a erro
médico no Brasil em 2017

Mariana Alvim -
BBC News Brasil em São Paulo

Casos tão complexos como a acusação contra um médico que realizou
vasectomia no paciente em vez de uma cirurgia de fimose ou a imputação
de erro no diagnóstico e tratamento de um tumor benigno que acabou se
tornando maligno e levou uma mulher à morte têm cada vez mais chegado à
Justiça no Brasil.

Acusações referentes a erro médico somaram 70 novas ações por dia no
país - ou três por hora - em 2017. Segundo o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), foram pelo menos 26 mil processos sobre o assunto no ano
passado. O órgão compila dados enviados por tribunais estaduais e
federais, além do STJ (Superior Tribunal de Justiça) - onde foram parar
os dois casos citados anteriormente. Por inconsistências metodológicas
entre as bases, contudo, o número pode ser maior.

Também por essa ressalva, o conselho não recomenda a comparação da
evolução anual. Mas os números de alguns tribunais dão a dimensão da
tendência com o passar dos anos: no STJ, novos casos referentes a erro
médico passaram de 466 em 2015 para 589 em 2016 e 542 em 2017. No TJ-SP,
o maior do país, os números passaram de 5,6 mil (2015) a 2,9 mil (2016)
e, finalmente, 4,6 mil (2017).

Para entrevistados de diversos lados do balcão, o volume de ações na
Justiça se relaciona com um quadro mais geral de judicialização da
saúde. Este é o nome dado à crescente busca, por parte de cidadãos, do
judiciário como alternativa para garantia do acesso à saúde, por exemplo
por remédios ou tratamentos - o que, por sua vez, esbarra nas limitações
orçamentárias do Poder Público ou no planejamento de empresas privadas
no ramo.

E o fenômeno tem ligação também com outra faceta: a busca pelos chamados
seguros de responsabilidade civil profissional. Em linhas gerais, este
serviço funciona com o pagamento de apólices por trabalhadores como
médicos e veterinários que, em caso de se tornarem réus em ações
relacionadas com o exercício de suas ocupações, têm custos como
pagamento de honorários de advogados e eventuais indenizações cobertos.

Segundo dados da Superintendência de Seguros Privados (Susep), esta
categoria vem crescendo nos últimos anos. Em valores reais, os prêmios
(prestações pagas pelos contratantes) do RC Profissional passaram de R$
236 milhões em 2015 para R$ 312 milhões em 2016 e R$ 327 milhões em
2017. O primeiro semestre de 2018 já mostra avanço em relação ao mesmo
período de 2017: crescimento de 8%. São 15 empresas atuando no segmento.

A Mapfre, uma delas, viu aumento de 10% no número de apólices adquiridas
e de 18% em prêmio no acumulado de doze meses (julho de 2017 a junho de
2018 versus julho de 2016 e junho de 2017). As ocupações atendidas estão
todas no ramo da saúde: médicos, dentistas, veterinários,
fonoaudiólogos, farmacêuticos e enfermeiros.

Ambas fontes não dispõem de dados de contratações específicas por médicos.

Mas a adesão a este tipo de serviço tem uma barreira peculiar: o
Conselho Federal de Medicina (CFM) e representações regionais da
categoria recomendam explicitamente a não contratação do seguro.


Por que entidades que representam a categoria são contra

"Os conselhos pregam que a relação entre médico e paciente deve ser da
maior confiança possível, construída na base da generosidade e
segurança. Quando o médico já está protegido pelo seguro, a relação
começa na defensiva", aponta José Fernando Vinagre, corregedor do CFM.

Outro argumento apresentado pela entidade é o de que exemplos
internacionais mostrariam que a adesão da classe médica ao seguro
contribuiria a um aumento no número de ações - "que muitas vezes se
baseiam em pedidos quase sempre emitidos, destemperadamente, por
pacientes mal orientados, ou ainda envolvendo interesses financeiros de
terceiros", segundo diz um comunicado do CFM.

A entidade critica ainda as restrições na cobertura dos seguros e uma
relação custo-benefício não compensadora.

Segundo o advogado Renato Assis, especialista em Direito da Saúde, o
crescimento do mercado de seguros para médicos é reflexo de um cenário
preocupante: o de que o Brasil está se aproximando à cultura americana,
"a mais litigante do mundo". Em linhas gerais, lá como cá especialidades
como obstetras, ginecologistas e cirurgiões são mais vulneráveis a
acusações de erro - e, assim, a apólices mais caras.

Dependendo da especialidade, os custos mensais para o segurado podem
variar de R$ 100 a R$ 1000, considerando uma faixa de cobertura de R$
500 mil em prêmio.

"O percentual de médicos processados nos EUA gira em torno de 9%. No
Brasil, já temos cerca de 7% de médicos processados", escreveu Assis por
e-mail à BBC News Brasil.

"Em relação aos profissionais, é inegável que houve a chamada
'mercantilização' da profissão. Está praticamente extinta a figura do
médico familiar, inquestionável como um sacerdote. Hoje temos em regra
uma relação mais fria, com atendimentos muitas vezes rápidos e
desumanizados por conta da precariedade das condições de atendimento e
jornadas de trabalho, aliada à alta quantidade de atendimentos em curto
espaço de tempo por conta da atuação dos planos de saúde".

A referência aos EUA quando o assunto são seguros para médicos é
frequente - já que, naquele país, este é um mercado gigante. Somente em
2017, seguros destinados especificamente a médicos somaram prêmios de
mais de US$ 9 bilhões (cerca de R$ 29 bilhões em valores de dezembro de
2017), de acordo com a Associação Nacional dos Comissários de Seguros
(Naic, na sigla em inglês).

Lá, a contratação do serviço pela categoria é a regra. Há até uma
expressão para classificar os médicos que são a exceção e não contratam
este tipo de serviço: são aqueles que decidem "go bare", algo como
"atuar nu".

Segundo a Associação Médica Americana (AMA, na sigla em inglês), pelo
menos sete Estados americanos (Colorado, Connecticut, Kansas,
Massachusetts, New Jersey, Rhode Island e Wisconsin) exigem a aquisição
de algum tipo de seguro para a prática médica.

"É extremamente importante observar que, embora muitos Estados não
exijam que os médicos obtenham níveis mínimos de seguro de
responsabilidade profissional, na prática, os médicos precisam ter um
nível mínimo deste serviço para obter benefícios como funcionários de um
hospital ou para ter cobertura de planos de seguro de saúde", explicou a
entidade por e-mail à BBC News Brasil.

Marcio Guerrero, presidente da comissão de Responsabilidade Civil Geral
da Federação Nacional de Seguros (FenSeg), aponta que, na prática, um
médico recém-formado nos EUA só passa a atender se tiver uma apólice.

"Eles sabem que podem ter um problema severo, já que as indenizações por
lá são altas e rápidas", aponta Guerrero, "No Brasil, a cultura do
seguro não é muito clara, ele não é visto como um investimento. Mas o
mercado (de seguros de Responsabilidade Civil) está em expansão, já que
o país que tem 452 mil médicos".

"Este tipo de seguro protege primeiro a reputação e depois o patrimônio
do médico, com o custeio da defesa jurídica. Fora que o seguro assume os
trâmites posteriores ao incidente: como quando você bate um carro e
nunca mais vai encontrar a outra pessoa envolvida no acidente, porque a
seguradora assume."

Entidades que representam médicos nos EUA, como a AMA, fazem, no
entanto, campanhas por uma reforma que reduza os custos da chamada
"medicina defensiva" - que levaria, além da contratação de seguros, a
práticas como a indicação, por profissionais de saúde, de exames e
tratamentos com o objetivo principal de protegê-los de eventuais
acusações futuras.

Por outro lado, pesquisadores e representantes da sociedade civil
defendem que estes gastos aumentam a proteção ao paciente.

É o que aponta também, no Brasil, Fernando Polastro, um dos
representantes da Associação Brasileira de Apoio às Vítimas de Erro
Médico (Abravem).

"A ideia é que as condenações levem a uma melhoria como um todo no
sistema de saúde, principalmente no público. Vemos diariamente a
multiplicação de casos, mas não punições na mesma medida", diz Polastro,
que é publicitário e conta ter formado a associação com amigos após
casos de erro médico na família.

"Se isto vai passar pelo encarecimento do sistema, que seja feito. O que
não pode acontecer é pactuar com este panorama: as pessoas entram
andando no hospital e saem mortas de lá."

"Dificilmente agimos contra um médico na Justiça comum. Em 90% dos
casos, a acusação é contra entidades como clínicas e planos de saúde."

O médico Renato Camargos Couto, professor da Faculdade de Ciências
Médicas de Minas Gerais (Feluma), está na linha de frente de um esforço
científico na busca por dados e soluções voltados à segurança do
paciente - e, para ele, isto deve passar por melhorias estruturais, e
não pela culpabilização de profissionais em particular. Com outros
pesquisadores, Couto publicou neste ano a segunda edição de um anuário
sobre o tema.

Analisando o histórico de pouco mais de 445 mil pacientes em 13 Estados
brasileiros, o grupo concluiu que, considerando complicações graves
associadas ao tratamento hospitalar (tecnicamente chamadas de eventos
adversos graves), 30% a 36% poderiam ter sido prevenidos com a melhoria
na assistência em saúde.

Nestes casos graves, também foi observado que os mais vulneráveis eram
aqueles nos "extremos de idade": recém-nascidos prematuros e idosos com
mais de 65 anos. Os pacientes sofreram, por exemplo, infecções ou
hemorragias após o uso de acessórios como cateter, sondas e ventilação
mecânica.


As melhorias sugeridas passam pela maior transparência e participação
dos pacientes nos procedimentos, melhoria na formação de profissionais
da saúde, além de mecanismos de avaliação da gestão organizacional -
apenas 5,3% da rede hospitalar brasileira, por exemplo, é avaliada por
auditorias externas.

"Se você está usando um equipamento de anestesia, precisa de energia
ininterrupta. Se a energia falhar, é uma tragédia. Para que isso não
aconteça, é preciso engenheiros, gerador, manutenção preventiva... Ou
seja, entregar a medicina hoje, principalmente no ambiente hospitalar, é
uma operação de guerra: portanto, complexa e sujeita a muitas falhas",
aponta Couto.

"A imprudência ou a negligência (por parte de um profissional) são
ocorrências raríssimas. A maior parte dos problemas é oriunda da
organização de um trabalho complexo como esse."

"A cultura punitiva (contra profissionais) dificulta a solução dos
problemas. Esta pandemia de eventos adversos que o mundo vê hoje não é
produzida pelo médico. Casos complexos tornam difícil estabelecer
causalidade, como supõe a punição."

Couto argumenta que a "medicina defensiva" é mais cara e ineficaz.

"Você vê o uso do antibiótico em emergências: ele é muito maior do que o
necessário. Na dúvida, os médicos passam, se protegendo de eventuais
complicações", exemplifica.

Nos EUA, a busca por dados que possam mensurar os custos da chamada
medicina defensiva é antiga e repleta de complexidades. Um artigo
publicado em 2010 no periódico "Health Affairs", porém, chegou perto
números: custaria 2,4% dos gastos totais com saúde no país, ou US$ 55,6
bilhões (em valores de 2008). Esta parcela considera custos com
pagamentos de seguros, indenizações, defesa legal e horas perdidas por
médicos em trâmites decorrentes de acusações.


Imperícia, imprudência e negligência

A legislação brasileira, centrada nos códigos Civil e Penal, além do
próprio Código de Ética Médica, indica a imputação do erro médico a um
profissional em caso de três situações: imperícia, imprudência e
negligência.

"De forma resumida: a negligência consiste em não fazer o que deveria
ser feito; a imprudência consiste em fazer o que não deveria ser feito;
e a imperícia em fazer mal o que deveria ser bem feito", explicou o CFM
em nota.

Os casos apresentados no início da reportagem tiveram desfechos
diferentes no STJ.

Em 2017, a Terceira Turma da corte decidiu afastar a culpa de um
ortopedista que havia sido condenado no Mato Grosso do Sul por
supostamente ter falhado no acompanhamento após uma cirurgia de retirada
de um tumor benigno no joelho do paciente - que depois se tornou maligno.

No entendimento da instância inferior, o médico havia privado a paciente
de um diagnóstico mais eficaz. Mas os ministros do STJ destacaram que a
perícia mostrou ter ocorrido uma evolução não esperada e rara da doença,
eximindo a culpa do ortopedista.

Por outro lado, no ano seguinte, a mesma turma confirmou a condenação de
um médico que realizou uma vasectomia em um homem de 20 anos que, na
verdade, tinha contratado uma operação de fimose. O erro foi constatado
durante a operação, quando o canal esquerdo que desemboca na uretra já
havia sido rompido.

Os autos do caso mostram que o paciente chegou a ver seu noivado
rompido, diante da incerteza sobre a possibilidade de ter filhos. No
entendimento dos magistrados, houve negligência do profissional.

Além da Justiça, as acusações de irregularidades podem ser avaliadas
também na esfera administrativa, como nos conselhos regionais e federal
de Medicina.

De janeiro de 2014 a junho de 2018, o CFM, que só avalia ações em caso
de recursos (ou seja, já avaliados em instâncias regionais), julgou 714
ações com acusações de erro médico.

Em 2017, foram 148 casos avaliados - 22 levando à absolvição e 99 a
algum tipo de punição (27 na forma de advertência confidencial; 35
censura confidencial; 42 censura pública; 11 suspensão por 30 dias; e 12
cassação).

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