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quinta-feira, 14 de março de 2024
Juízes divergem sobre admissão de pessoas pardas barradas por banca de heteroidentificação
Nos últimos dias, a Justiça de São Paulo tem sido acionada com frequência por pessoas autodeclaradas pardas que tiveram suas matrículas barradas da USP após decisão da banca de heteroidentificação. A banca é responsável por validar as autodeclarações de raça que os candidatos fazem para passarem pelas cotas.
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Alguns juízes determinaram a admissão dos candidatos, enquanto em outros casos os magistrados decidiram que a decisão da universidade é soberana. Somente na última semana, o GLOBO identificou ao menos sete decisões sobre o tema, sendo algumas determinando a admissão dos candidatos e outras negando os pedidos.
O tema tem sido alvo de discussões nas últimas semanas e reportagem do GLOBO mostrou que especialistas e coordenadores das comissões de heteroidentificação destacam a importância dessas bancas para prevenir fraudes nas cotas raciais. Entretanto, eles defendem melhorias nos critérios de avaliação para deixar o processo menos suscetível a erros.
Em decisão do último dia 7, o juiz Kenichi Koyama, da 15ª Vara de Fazenda Pública da capital, negou um pedido de readmissão de um jovem que havia sido aprovado em engenharia elétrica na Escola Politécnica da USP, após fazer o Provão Paulista. Ele teve sua pré-matrícula efetivada e viajou de Aspásia, no Noroeste paulista, até o campus, onde foi informado que a comissão de heteroidentificação havia reprovado sua admissão como pardo. Ele recorreu administrativamente, mas não teve sucesso.
Koyama destacou que as cotas raciais são uma ação afirmativa e uma política transitória, e reconhece que há uma polêmica na sociedade em torno das avaliações de raça e cor. Entretanto, ele diz que as cotas são um mecanismo de “reparação de injustiças históricas e sociais” e que “o tempo político nem sempre é o tempo da política pública”. Ele avaliou que, na foto que o jovem anexou ao processo, “não se extraem traços fenotípicos evidentes” e um laudo dermatológico que atesta a cor de sua pele não pode se sobrepor ao de comissão especializada. “E, a despeito do que por vezes se alega, a autodeclaração não é, em toda e qualquer hipótese, bastante para provar a identidade racial para fins de acesso às cotas raciais, nem absolutamente insuscetível de questionamento pela administração”, escreveu o juiz, ressaltando que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu pela legitimidade das bancas de heteroidentificação.
Já em decisão do último dia 8, a juíza Gilsa Elena Rios, da mesma vara, atendeu a um pedido de um jovem que havia sido aprovado para o curso de Administração na USP e teve a matrícula barrada por ser não ter tido sua autodeclaração de pardo validada pela banca de heteroidentificação. O candidato soube da negativa em 24 de fevereiro, recorreu, mas não obteve sucesso. Ele então entrou na Justiça. Seu principal argumento na ação foi que ele foi considerado pardo na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e na Faculdade Técnica de São Paulo (Fatec), além de ter cursado o colégio técnico na Etec como aluno pardo. A juíza entendeu que “não há como ser desconsiderada as identificações realizadas pelas outras instituições”, portanto determinou a readmissão imediata do aluno.
No mesmo dia, a juíza Ana Lúcia Graça Lima Aiello, da 1ª Vara de Fazenda Pública de Bauru, determinou a admissão de um jovem que se autodeclarou pardo que passou para Odontologia para a USP de Bauru, no interior do estado, mas havia sido barrado pela comissão de heteroidentificação.
“Os documentos indicam a probabilidade do direito da parte autora, pois evidenciam que o autor fora considerado pardo por profissional especialista na área de dermatologia, apresentando indícios suficientes para elidir a presunção de legitimidade do ato administrativo”, escreveu a magistrada, afirmando que a comissão não apresentou fundamentação para não ter considerado o candidato como pardo.
Entendimento diferente teve a juíza Gabriela Muller Carioba Attanasio, da Vara de Fazenda Pública de São Carlos, no dia 5 de março. Uma jovem autodeclarada parda foi aprovada na Fuvest para cursar Sistemas de Informação na USP de São Carlos, mas sua autodeclaração não foi homologada pela banca. Entretanto, a candidata afirmou que em uma graduação anterior, na mesma instituição, já usufruiu da cota étnica-racial, e que além de ter características fenotípicas de parda, seu pai é negro. A juíza afirmou que, na foto da candidata, entretanto, “não se constata de plano que possa ser considerada como pessoa parda”. Por isso, a juíza negou a liminar por não notar “qualquer ilegalidade ou abuso de poder” por parte da universidade, portanto deve prevalecer a “presunção de legitimidade dos atos administrativos”.
No dia 5, a 14ª Vara da Fazenda de São Paulo concedeu uma liminar que determinou que a USP matriculasse Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos, que havia tido sua matrícula em Direito cancelada por não ter a sua autodeclaração de pardo aceita pela banca examinadora. Na decisão, o juiz Randolfo Ferraz afirmou que o jovem é "filho de pessoa de raça negra" e determinou sua reintegração.
Nesta terça (12), o juiz Fausto Dalmaschio, da 11ª Vara de Fazenda Pública, negou um pedido de um jovem que havia sido aprovado para cursar Direito pelo Provão Paulista na USP e teve a declaração como pardo não homologada pela banca. O magistrado pontuou que não cabe à Justiça "declarar o grupo étnico-racial ao qual determinada pessoa pertence", porque o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza o critério da autodeclaração racial. Entretanto, o juiz destacou que "o conceito de 'raça' abrange, para além de seu significado biológico, que se manifesta no fenótipo de cada qual, um significado social, ou seja, a interpretação de toda a sociedade acerca da integração a si de um determinado grupo de pessoas" e que é condição para que a política pública de cotas se realize que ela seja destinada "a um grupo mais restrito de pessoas do que o histórico de miscigenação brasileira poderia considerar, uma vez que, virtualmente, a maior parte da população tem antepassados negros e algum tipo de manifestação fenotípica que remeta à afrodescendência".
Houve casos que já até chegaram ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em segunda instância. Um deles é o de um homem que foi aprovado para o curso de Engenharia Aeronáutica. A Vara da Fazenda Pública de São Carlos negou o pedido para que a USP fosse obrigada a aceitar sua matrícula e sua autodeclaração como pardo, que havia sido negada pela comissão de heteroidentificação, sob a justificativa de que "não cabe ao Poder Judiciário ultrapassar os limites da legalidade e da legitimidade, a fim de reexaminar ou alterar o mérito da decisão administrativa". Ele recorreu por meio de agravo ao TJSP, onde o desembargador Martin Vargas, da 10ª Câmara de Direito Público, que manteve a decisão de primeira instância.
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