Da utilidade dos advogados Parte II
No
domingo, deixei uma questão no ar. Uma que envolvia dissociar justiça
de um bom advogado ou da lei. É comum alguém insistir que a lei que
protegeu determinada pessoa é injusta. Reclama-se da infinidade de
recursos protelatórios que impedem a condenação definitiva de um odiado
réu. Nesse caso, em vez de atacar legisladores ou juízes, desloca-se a
raiva contra o advogado. A proteção dos direitos de alguém é central na
própria ideia do Direito e o bom advogado luta com as ferramentas
disponíveis, muitas no limite da ética.
É
certo que existem os desonestos. Pela minha experiência de vida,
registra-se uma ampla democracia na distribuição da falta de caráter
entre as profissões, classes sociais e identidades étnicas e de gênero.
Há canalhas pulverizados sobre todos os campos.
Há
anos vi o filme Filadélfia (direção de Jonathan Demme, 1993). Tom Hanks
interpreta um advogado que acredita que o preconceito com o HIV tenha
originado sua demissão. Em determinado momento, ele é questionado na
Corte pelo motivo de ter seguido o Direito. Ele responde de forma
comovente com uma ideia que pode ser usada para todas as profissões do
planeta: o que ele mais amava na prática do Direito é que “vez por outra
– nem sempre, mas ocasionalmente – você pode participar do ato de se
fazer justiça. E é realmente emocionante quando isso ocorre”. O mesmo
pode ser dito para o professor quando, em sala de aula, consegue se
encontrar com a mudança e o aprendizado.
Advogados
devem nos ensinar a pensar as possibilidades de um texto legal. Eles
devem debater a ideia de igualdade, de justiça, de direitos, de um
Estado baseado no Direito e não no arbítrio. Na maioria das vezes,
infelizmente nem sempre, advogados combatem o estado de exceção, a
tortura e a violação da dignidade humana. Com zelo, eles tratam da
libertação do indivíduo de uma prisão arbitrária ou a equidade na
distribuição de um benefício.
Não idealizo
funções, nem sequer a minha. Sei da humanidade imersa no egoísmo e na
violência. Exatamente por isso, tenho esperança em bons advogados que, a
cada geração, entendam o desiderato que fez nascer a vontade de uma
justiça que escapasse da vendeta privada ou do simples direito do mais
forte.
Hamlet, como vimos, não confiava em
rábulas. Ele era um príncipe com direito adquirido pelo sangue e,
curiosamente, parte do Estado dinamarquês. Historicamente, o Estado
gosta pouco de advogados, especialmente os autônomos e com princípios.
Hamlet iniciou uma trajetória de vingança privada que levou à morte de
seu tio, sua mãe, sua namorada, seu quase cunhado, seus dois ambíguos
amigos e seu futuro sogro. Por fim, pereceu o próprio querelante ao
optar pela justiça tribal imersa em sua subjetividade egoísta.
Vamos
soltar a imaginação. Hamlet desconfia do assassinato do pai. O
argumento do fantasma é pouco sólido para tribunais, mesmo aos nevoentos
ao redor de Copenhague. Ele poderia começar contratando um bom
especialista em direito consuetudinário (afinal, a imaginação do autor é
inglesa) e lembrar que, na Inglaterra e na Dinamarca, o herdeiro da
coroa seria ele, Hamlet, não o tio. O trono é preferencialmente
masculino, linear e direto e só vai para ramos laterais em caso de
impedimento do titular. Poderia ter impetrado mandatos (para usar
linguagem contemporânea), cooptado Cortes elevadas com apoio da “vontade
geral” da tradição iluminista posterior. Caberia a um bom conselheiro
jurídico lembrar que Cláudio estava impedido de decidir sobre a
sucessão, pois era parte beneficiada. Em suma: Hamlet poderia ter lutado
juridicamente de forma aberta e clara e, pelo que sabemos da peça,
tinha o povo e muitos juristas fiéis a seu pai ao seu lado.
Teria
Hamlet sucesso? Não temos como saber. Sabemos apenas o que ele
utilizou: o caminho alternativo da vingança pessoal que acabou punindo
inocentes e não restaurou a justiça no reino. No afã de vingar o pai sem
usar a lei e o Direito, ele abriu caminho para uma invasão estrangeira e
afastou a linhagem do rei legítimo. Sua solução foi muito pior do que
qualquer outra. A guerra privada do melancólico príncipe destruiu todo o
sistema de poder, eliminou o núcleo da corte e ainda causou o fim da
soberania dos governantes de Elsinore. Qual o erro fundamental da
personagem? Não ser aconselhado por um bom advogado e não confiar nas
leis como elemento restaurador da ordem. Ao fazer justiça pelas próprias
mãos e exercer a lex talionis de forma radical, cometeu desastres ainda
mais vastos. Uma tia sábia teria dito: “Cláudio é velho e Gertrudes não
pode mais gerar filhos, aguarde um pouquinho”. Um advogado teria
mostrado o direito dinamarquês e sugerido ações concretas, conselhos
práticos. Ambos poderiam ter razão.
Em
resumo, talvez ainda tenhamos dúvidas sobre a utilidade moral e prática
de um advogado. Porém, o caso de Hamlet (ou o de Antígona que também não
usou um) é exemplar. Entregue a si, a sociedade é mais destrutiva do
que a fúria dos tribunais. Advogados acabam atraindo um pouco do horror
que temos diante da injustiça do mundo. Ao entrarem no poço lamacento
dos atritos dos filhos de Prometeu, advogados são associados à maldade
que, incapazes de observar em nós, transferimos para os outros. Bons
advogados separam nosso mundo da barbárie. Dedico estas crônicas a um
advogado honesto e amoroso, meu pai, doutor Renato Karnal, devoto de
Santo Ivo. Boa semana para todos os advogados do Brasil.
Entregue a si, a sociedade é mais destrutiva do que a fúria dos tribunais
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