Lugar assombrado que ginastas não deviam revisitar
Centro de treinamento da equipe americana fica em fazenda afastada do Texas; lá, Larry Nassar cometeu muitos abusos
O
centro nacional de treinamento da equipe feminina de ginastas dos
Estados Unidos é um lugar de difícil acesso. Fica a cerca de 100
quilômetros de Houston, dentro da Floresta Nacional Sam Houston, numa
propriedade de 800 hectares de Bela e Martha Karolyi, a dupla de
técnicos que desertou da Romênia e se tornou força propulsora da
ginástica dos EUA. Na acidentada estrada para a fazenda, em 2008, um
javali selvagem passou bem na minha frente. Ao chegar, fui recebida por
um pavão. Bela me disse que estava feliz por não ter vizinhos.
O
lugar é tão remoto que o site da USA Gymnastics informa que a recepção
de celulares “é meio ruim”. Famílias de atletas não podem circular por
ali. Visitas, só com permissão.
A equipe
nacional feminina de ginástica deixa os ginásios de suas cidades para
ser reunir uma vez por mês nesse centro de treinamento do Texas, onde
fica desconectada e focada somente em seu esporte. O sistema ajudou a
fazer dos americanos uma força quase imbatível na última década.
Mas,
com todas as medalhas que saíram da fazenda dos Karolys, ela não pode
mais ser o centro nacional de treinamento. O lugar tornou-se assombrado.
Lawrence G. Nassar, exmédico da equipe, foi condenado por molestar
ginastas ali (bem como em sua casa e em outros lugares).
Simone
Biles, uma das mais condecoradas ginastas da história e estrela dos
Jogos Olímpicos do Rio, diz que tem medo de treinar na fazenda. “Fico
deprimida em pensar que, para realizar meu sonho de competir em Tóquio
em 2020, terei de voltar ao mesmo centro de treinamento no qual fui
molestada”, disse no Twitter e no Instagram.
Roy
Lubit, psiquiatra de Nova York especializado em traumas emocionais de
crianças que sofreram abuso, disse que os comentários de Biles deveriam
ser levados a sério. “É uma péssima ideia mandar essas garotas de volta
àquele centro de treinamento”, afirmou, explicando que retornar a um
lugar em que se sofreu abuso tende a acionar um poderoso gatilho de
memórias traumáticas.
A USA Gymnastics,
que enfrenta vários processos relacionados a abuso sexual, respondeu às
revelações de Biles informando que continuará “ouvindo nossas atletas” e
tentará criar para elas uma “cultura de empoderamento”. Até agora, a
federação não desistiu da propriedade dos Karolyis.
Há
não muito tempo, a USA Gymnastics pretendia adquirir a propriedade.
Então, os crimes de Nassar vieram a público. Uma ginasta após outra
falou abertamente, relatando o trauma e o horror de ser submetida aos
“tratamentos intravaginais” de Nassar, que ele descreveu como
procedimentos médicos legítimos.
Em meados
do ano passado, a federação anunciou ter desistido da intenção de
comprar a fazenda. Citou “gastos financeiros inesperados associados à
aquisição” como uma das razões pelas quais o negócio não vingou. A USA
Gymnastics tem procurado novo local de treinamento. Procura, procura,
procura... Mesmo uma solução temporária resolveria. A inação contraria a
promessa de “ouvir nossas atletas”.
“Um
dos principais incentivos para a cura é que os que sofreram abuso se
sintam no controle e tenham escolhas”, disse o psiquiatra Lubit. “Mas o
que o comitê de ginástica está dizendo é que ‘não estamos providenciando
acomodações para deixar vocês confortáveis’. É um outro tipo de
situação abusiva.”
Quando a USA Gymnastics
recebeu os relatórios originais sobre os abusos, os funcionários não os
levaram suficientemente a sério. A federação demorou cinco semanas numa
investigação interna antes de contatar as autoridades. Neste ponto,
restam poucos meios para que a organização faça ajustes sem que
advogados ditem os termos. Mudar o local do centro de treinamento pode
ser uma rara oportunidade, se não de acertar as contas com o passado,
pelo menos de cumprir as promessas referentes ao futuro. /
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