Compartilhar notícias jurídicas, jurisprudências e doutrinas e apresentar dicas sobre direitos dos cidadãos.
sábado, 5 de agosto de 2023
A tese de defesa do advogado do ex-presidente Lula, José Roberto Batochio
"Senhores ministros, os jornais de ontem de todo o planeta
publicaram a prisão do ex-presidente Nicolas Sarkozy, da França.
Esta prisão teria ocorrido para que os agentes do Estado,
encarregados da investigação criminal, pudessem ouvir aquele que
foi por duas vezes presidente da República — que no passado foi
modelar, e, através do iluminismo, exportou liberdade e
democracia para o mundo — para que ele pudesse ser ouvido em
um inquérito, numa indagação que versava sobre recursos de
contribuição de campanha.
Dei-me, então, conta de que esta maré montante de autoritarismo
que se hospeda em determinado setores da burocracia estável do
Estado não é um fenômeno que ocorre apenas em território
brasileiro. Preocupantemente, isto está sucedendo em todo o
planeta.
Na França não se pode conhecer o conteúdo das investigações
nem o investigado e nem os seus representantes. Na Itália, o
processo penal está sofrendo um recrudescimento como nunca
antes visto. Isto me preocupa porque a continuarem as coisas
“
como vão, eu não sei qual é o futuro que nos aguarda. Se ele for
assim, confesso aos senhores, que eu não tenho nenhum interesse
em conhecê-lo porque, como disse José Bonifácio, a liberdade e
os princípios libertários são uma coisa que não se perde se não
com a vida. É impossível viver fora de um sistema que não seja
um sistema de liberdades.
Inspirado por este acontecimento de ontem, decidi começar essa
peroração trazendo a vossa excelência as palavras ditas por
Chrétien Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, que foi um
grande jurista francês e advogado de Luís XVI no julgamento que
o conduziu à bastilha e à guilhotina. Tinha sido ministro do rei e
foi o seu advogado, sabia que ia ter de enfrentar a opinião pública
e os jacobinos sedentos de sangue e punição a qualquer preço. Ele
começou a defesa de Luís XVI, perante a corte francesa, dizendo
o seguinte: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça.
Poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira” [o
ministro citou a fala originalmente em francês]. Eu aqui trago a
vossa excelência também duas coisas. São dois preceitos do nosso
ordenamento jurídico democrático.
Um é o artigo 5º inciso 57 da carta política e o outro é o artigo
283 do nosso Código de Processo Penal. Eles estão sob ameaça de
mortificação e extinção.Trago também, como segunda coisa, a
verdade que preciso dizer sem peias, sem freios, sem receios, e
vossas excelências poderão, depois de ouvir, matar ou não esses
preceitos democráticos que aqui estou a defender na tarde de hoje.
Qual é a origem deste preceito constitucional que instituiu entre
nós a presunção da não culpabilidade ou a presunção da
inocência? Em uma conversa com o eminente ministro Sepúlvela
Pertence, ainda na noite passada, nos lembramos de que esse
princípio constitucional que nós conseguimos introduzir na nossa
lei máxima tem origem na legislação eleitoral. Porque a ditadura
militar, o autoritarismo que nós vivemos em um passado não
muito remoto, considerava fator impeditivo de elegibilidade — de
ser sujeito ativo eleitoralmente — aquele que tivesse contra si
uma denúncia recebida.
Vejam, vossas excelências, a simetria. Quando, na Constituinte de
87, na Constituição de 88, nós escrevemos o plexo de direitos que
compõem o capítulo dos direitos e garantias individuais e
coletivos, nós procuramos positivar no texto nobre da mais alta
hierarquia legislativa do nosso país essas garantias para que nós
pudéssemos ter um instrumental necessário para repelir as
investidas do autoritarismo, vestisse ele verde-oliva ou envergasse
a cor negra da asa da graúna.
De onde vier será repelido, porque nós brasileiros não aceitamos
viver sob o tacão autoritário de quem quer que seja. E, por essa
razão, é que nós escrevemos a carta política que antes do trânsito
em julgado nenhum cidadão pode ser considerado culpado. Isto
significa que aconteceram grandes discussões a respeito sobre se
isso eliminaria as prisões, as custódias cautelares, as custódias
temporárias e etc. Mas, não. Não há incompatibilidade.
Há incompatibilidade em pretender-se dar início à execução de
uma pena encontrada numa sentença que não se tornou imutável.
Esta é a discussão que aqui se faz. Não só pela dicção do artigo 5º,
parágrafo 57, da Constituição, mas também pelo artigo 383 do
nosso Código de Processo Penal que espelhadamente reflete esse
dispositivo constitucional.
E o que é que nós temos nesta impetração de hoje, em que há uma
certa volúpia em encarcerar um ex-presidente da República? Não
que o presidente da República seja um cidadão diferente de
qualquer outro, não é, ele não está acima da lei. Ninguém pode
estar acima da lei, mas ninguém pode ser subtraído à sua proteção.
Ninguém pode ser retirado da proteção do ordenamento jurídico.
E o que é que nós temos aqui? Nós temos aqui uma decisão do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região que confirmou decisão
condenatória proferida em 1ºgrau e que dispôs expressamente o
seguinte: de acordo com a Súmula 122 desta corte regional,
esgotada a jurisdição em série de revisão neste tribunal regional,
expeça-se ordem de prisão e oficie-se o juiz com base nesta
Súmula 122.
E o que diz essa súmula? Ela não diz o que se encontrou aqui
nesta Suprema Corte, que em determinado casos, antes do trânsito
em julgado há possibilidade do início da execução da pena. Não!
Essa Súmula 122 é inconstitucional, senhores ministros, porque
ela diz que é obrigatório o início da execução da pena. Coisa que
contraria frontalmente a Constituição e o artigo 383 do CPP, e que
contraria a decisão tomada aqui nessa casa que apenas acenou
com a possibilidade.
Vossas excelências, proponho eu que deveriam declarar
inconstitucional essa súmula. Não só pelo que ela contraria da
Constituição, no sentido de dar início à execução da pena, mas
porque ela transforma esse início da execução em obrigatório,
contra a letra da constituição.
Quando eu vejo, senhores ministros, os tribunais — e peço vênia
para dizer isso com o mais elevado respeito — entrarem a legislar,
eu sinto uma frustração enorme. Eu sinto a sensação de eu perdi
anos na Câmara dos Deputados quando fui parlamentar, a
trabalhar em uma coisa inútil, porque as leis que nós elaboramos
lá são substituídas por exegeses que as mortificam e que, às vezes,
têm o desplante de contrariá-las, substituindo-as por
mirabolâncias exegéticas que fazem revirar no túmulo o senhor
Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu,
tal o grau do grau da sem cerimônia com que se invadem
atribuições dos outros poderes para atender a não sei que
inclinações. A voz das ruas? Mas a voz das ruas pertencem às
ruas. Quem tem que manter a mão no pulso da sociedade das ruas
não é o poder judiciário, é o parlamento. São os políticos que têm
que captar os anseios e os batimentos da população e da turba, por
que não dizer, e interpretá-los e transformá-los em normas.
Não é dado ao poder judiciário — e digo isso como brasileiro —
nem daqui e nem de nenhum lugar do mundo, entrar a legislar
para atender a este ou aquele pragmatismo, a esta ou aquela
conveniência social de ocasião.
Senhores, eu pergunto como seria possível nós denegarmos esta
ordem de habeas corpus. Está caracterizado o constrangimento
ilegal em potência iminente. Tem dada marcada. A prisão está
marcada para o dia 26 de março. Foi a data em que se marcou o
julgamento dos embargos de declaração e já está decidido:
julgados os embargos de declaração, esgotou-se a jurisdição,
mandado de prisão nos termos da súmula 122.
Agora, eu pergunto a vossas excelências, se nós temos na casa
duas ações diretas de constitucionalidade, de que é relator o
eminente ministro Marco Aurélio, e se este Plenário declarar a
constitucionalidade do artigo 383 do CPP, como é que nós vamos
justificar a prisão de um ex-presidente da República por um
esquito, uma vacilação? Por que esse açodamento em prender?
por que esta volúpia em encarcerar? O que justifica isso se não a
maré montante da violência da autoridade, se não a maré
montante da volúpia do encarceramento?
Três anos atrás, em um evento da Ordem dos Advogados do
Brasil, nós já tínhamos dito isso: se o judiciário não entender pela
ciência, pela razão, pela racionalidade, que o encarceramento em
massa é uma política desastrosa, vai ter que engolir essa realidade
pela necessidade econômica que a superpopulação carcerária
acarreta. Nós não podemos querer resolver todos os problemas.
Agradeço e peço que seja concedida a ordem para o efeito de se
determinar que se aguarde pelo menos o julgamento das duas
ações direta de constitucionalidade, se não for aguardar o trânsito
em julgado. Muito obrigado"
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário