domingo, 30 de junho de 2024

Usucapião extrajudicial ou como se tornar dono de imóvel sem pagar por ele

Do alto do prédio na rua Lourenço Castanho, na Vila Nova Conceição, zona sul de São Paulo, a enfermeira Edinéia Bispo da Cruz, de 57 anos, acompanha a movimentação de ciclistas, pedestres e corredores no Parque Ibirapuera. Além da vista privilegiada num dos metros quadrados mais caros da capital paulista, a enfermeira vive num apartamento com dois quartos, suíte e varanda. Pelo imóvel, Edinéia diz que não desembolsou nada: foi conquistado pelo que o judiciário chama de usucapião. A modalidade é um jeito de se tornar dono de uma propriedade que já tem herdeiros. Isso acontece quando alguém cuida do imóvel, mora nele e age como dono por ao menos 10 ou 15 anos — período conhecido como usucapião ordinária e extraordinária, respectivamente —, sem que os sucessores reclamem a posse. Se essa pessoa cumprir os requisitos da lei, ela pode pedir na Justiça para ser reconhecida como a nova proprietária do imóvel, mesmo que ele tenha pertencido a um parente morto e fosse destinado a outros herdeiros. No caso de Ednéia, ela conta que foi cuidadora de uma idosa por mais de 20 anos, ofício que anteriormente foi responsabilidade da sua mãe. Instalada na casa para prestar cuidados contínuos, a enfermeira afirma que durante todo esse tempo a empregadora nunca pediu que ela deixasse o lar, e passou a cuidar do imóvel como se fosse dela, fazendo reparos e pagando as contas. Com a morte da mulher na pandemia de covid-19, Ednéia entrou com pedido de usucapião na Justiça. “Só que no meu caso foi muito mais complicado porque era um imóvel de herança, com filhos vivos, e eu precisei provar que habitava o espaço também como proprietária sem nenhuma reclamação dos herdeiros”, lembra a enfermeira. Para a escritura levar seu nome, a enfermeira montou o que chama de “megaoperação”: contou com ajuda dos porteiros, vizinhos e até comerciantes. Embora não haja pagamento pelo imóvel, não há como ter a propriedade por usucapião de herança se quem entrou com o pedido não tem como comprovar vínculo com o imóvel. Dessa forma, a usucapião não pode ser utilizada em casos onde a pessoa que ocupa o bem tem conhecimento de que não é o proprietário ou trabalha para o mesmo (como caseiros e locadores, por exemplo). A usucapião pode ser feita via judicial ou extrajudicial, ficando a critério do requerente/solicitante optar, mas a via extrajudicial é muito mais vantajosa por ser mais barata, e muito mais rápida. Assim como a usucapião judicial, a usucapião extrajudicial é uma forma de aquisição dos direitos reais de um bem móvel ou imóvel, isto é, da propriedade de um bem, desde que preenchidos os requisitos necessários para tanto. A usucapião extrajudicial difere da judicial por ser possível a sua realização em um cartório ou tabelionato, o que reduz significativamente a burocracia, os custos e a morosidade por não haver necessidade da participação do Poder Judiciário. Primeiro deve ser analisado o caso concreto para traçar a estratégia a ser seguida, já que existem diversas modalidades de usucapião, com requisitos diversos. De toda forma, podemos dizer que é cabível a utilização do instituto desde que seja comprovado o exercício da posse exclusiva do imóvel, com ânimo de dono e de maneira mansa, pacífica, contínua e duradoura. O interessado precisa reunir uma série de documentos como contas de luz e água, Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e fotografias. Além disso, é possível usar depoimentos de testemunhas para provar os requisitos. O tabelião examina os documentos apresentados pelo requerente e, se necessário, pode realizar diligências no local do imóvel para entrevistar vizinhos e coletar depoimentos”, explica o 1º vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil, da Seção São Paulo (CNB/SP), Daniel Paes de Almeida. “Ele verifica a ausência de oposição à posse e a continuidade do uso do imóvel pelo período exigido. A ata notarial é um instrumento público que certifica a situação da posse, servindo como prova no processo de usucapião”, ressalta. Além do problema com documentação, Almeida aponta que há ainda dificuldade em comprovar a posse mansa e pacífica com a documentação adequada. Problemas em notificar todos os interessados, especialmente herdeiros e terceiros, confusão sobre os prazos exigidos para diferentes tipos de usucapião, e oposição de terceiros que contestam a posse também dificultam a conclusão do processo. O advogado e professor universitário, Fabrício Camargo, explica que não é necessário que todos os herdeiros concordem com a usucapião de um imóvel herdado. Segundo ele, o processo, em regra, é individual e depende do herdeiro, autor da ação que está pleiteando a posse. “É importante que o herdeiro que busca a usucapião cumpra os requisitos legais, como o tempo de posse e a boa-fé”, diz. Caso contrário, conforme ele, outros herdeiros podem contestar a aquisição da propriedade. “As [situações] mais comuns são de que o usucapiente não possui legitimidade para propor ação, não possui posse mansa e pacífica, não possui boa-fé. Pode-se contestar também a data da morte, que afeta o início do prazo para a usucapião,” completa o professor. Tanto Macedo quanto Camargo afirmam que a ação de usucapião pode ser rejeitada se não houver comprovação adequada de posse exclusiva pelo período exigido por lei. Em relação a bens de herança, há divergência entre os tribunais sobre a possibilidade de transmissão da propriedade para um herdeiro através da usucapião. Isso porque, segundo eles, de acordo com o princípio da Saisine (art. 1.784 do Código Civil), a herança é transmitida imediatamente aos herdeiros legítimos e testamentários após a morte do autor da herança. A usucapião conta com uma série de modalidades e cada uma se destina a amparar o interessado em um determinado caso. Confira a seguir as principais! Usucapião Ordinária - Destina-se aos casos em que há um justo título comprovando a aquisição do bem usucapido, desde que presentes os seguintes requisitos: Animus Domini, ou seja, agir como se dono fosse; Posse mansa e pacífica; Posse ininterrupta do bem por no mínimo dez anos; Boa-fé. Usucapião Extraordinária - Destina-se aos casos em não há um justo título comprovando a aquisição do bem usucapido, desde que presentes os seguintes requisitos: Animus Domini, ou seja, agir como se dono fosse; Posse mansa e pacífica; Posse ininterrupta do bem por no mínimo quinze anos (esse prazo pode ser reduzido para dez anos nos casos em que o possuidor resida ou tenha realizado investimentos de caráter social e econômico no imóvel. Usucapião Rural - Destina-se à aquisição de imóveis urbanos de até 50 hectares, desde que presentes os seguintes requisitos: Animus Domini, ou seja, agir como se dono fosse; Posse mansa e pacífica; Posse ininterrupta do bem por no mínimo cinco anos; Utilizar o imóvel para moradia e torná-lo produtivo pelo trabalho; Não ser proprietário de outro imóvel. Usucapião Especial Urbana - Destina-se à aquisição de imóveis urbanos de até 250m², desde que presentes os seguintes requisitos: Animus Domini, ou seja, agir como se dono fosse; Posse mansa e pacífica; Posse ininterrupta do bem por no mínimo cinco anos; Utilizar o imóvel para moradia; Não ser proprietário de outro imóvel; Não ter adquirido a propriedade de outro imóvel por essa modalidade de usucapião anteriormente. Confira os documentos exigidos para o processo de usucapião extrajudicial Requerimento de usucapião: assinado pelo requerente ou por seu advogado; Planta e memorial descritivo do imóvel: elaborados por profissional habilitado e com a Anotação de Responsabilidade Técnica; Certidões negativas dos distribuidores cíveis: para comprovar a inexistência de ações possessórias sobre o imóvel; Comprovantes de posse: documentos que demonstrem a posse mansa, pacífica e contínua do imóvel pelo prazo legalmente exigido; Ata notarial: lavrada pelo tabelião de notas, atestando a posse do imóvel; Certidão de ônus reais e ações reais e pessoais reipersecutórias: emitidas pelo cartório de registro de imóveis; Documento de identificação e CPF dos requerentes; Justo título ou quaisquer documentos que comprovem a origem da posse. Fonte: 2º Tabelião de Notas da Comarca de Ribeirão Preto Especialistas dizem que a orientação para as ações de usucapião é basicamente a mesma para todos os tipos de casos. Segundo eles, é fundamental conversar com o interessado e explicar todo o procedimento a ser seguido. A pessoa precisa entender a estratégia que o advogado deve traçar, inclusive para a coleta da documentação necessária para comprovação. Além disso, o interessado deve estar ciente das fases do processo para que esteja preparado para participar da audiência de instrução, indicar testemunhas e ser ouvido. “A melhor estratégia é buscar a verdade. Se a pessoa tem a posse mansa e pacífica, ela, provavelmente, poderá ser provada. Perceba que a ideia de posse mansa e pacífica se relaciona a fatos, não a documentos”, pontua a advogada especialista em direito das famílias e sucessões, Gabrielly Ramos Macedo. Não é possível estabelecer a duração do processo de usucapião porque isso depende da complexidade de cada caso e da estrutura do tribunal onde está sendo processado. Geralmente, trata-se de um processo judicial que demanda uma extensa produção de provas, o que significa que não é um processo rápido. “Geralmente leva de um a três anos, dependendo da complexidade do caso e do volume de processos na vara competente”, explica o CEO da Guarda Digital, Sidney Pedrotti. Se o processo de usucapião for bem sucedido, o herdeiro obtém a propriedade do bem e recebe um documento que confirma sua posse exclusiva. Isso significa que a propriedade não precisa mais ser dividida com os outros herdeiros. “O antigo proprietário não terá mais direitos sobre o bem usucapido. Todos os deveres e responsabilidades inerentes à propriedade passam para o novo proprietário”, ressalta Camargo. Veja o passo a passo para registrar um imóvel usucapido Reunião da documentação: coleta de todos os documentos necessários; Lavratura da ata notarial: realizada pelo tabelião de notas, certificando a posse do imóvel; Protocolização do pedido: no cartório de registro de imóveis competente; Análise e notificações: o oficial de registro de imóveis analisa o pedido e notifica os interessados; Decisão do registrador: o oficial decide pela procedência ou improcedência do pedido; Registro da usucapião: se o pedido for procedente, o imóvel é registrado em nome do possuidor. Fonte: 2º Tabelião de Notas da Comarca de Ribeirão Preto

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