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sábado, 8 de março de 2025
Justiça determina que Facebook desbloqueie músicas sobre Exú e pague indenização de R$ 8000,00. Veja sentença
A parte autora teve bloqueada as músicas Exú e Limites, constantes em álbum musical que lançou, em conta do Instagram que mantém com a adversa. Esta, por sua vez, sustenta a regularidade de sua conduta, baseada em violação de termos de uso do adverso. As canções bloqueadas pela ré contém letras em iourubá, fazendo referencia à entidade Exú. Com o bloqueio, impediu-se, pois, que o fazer artístico, realizado em uma sociedade constituída desde 1500 sob padrões eurocêntricos, divulgasse temática de religiões de matrizes africanas, as quais sobreviveram a despeito de toda intolerância que a população escravizada sofreu por séculos de História do Brasil. Um caso como o dos autos faz lembrar do trabalho de abolicionistas como o pernambucano Joaquim Nabuco que, no período imperial-escravocrata, refletia não apenas a necessidade da eliminação do vergonhoso trabalho servil contra os africanos e descendentes de africanos trazidos à força para o Brasil. Refletia também sobre o que seria o nosso país no pós-abolição, tendo o autor consciência que os valores hierárquicos de uma sociedade de origem escravocrata não seriam eliminados com um simples decreto imperial extinguindo o trabalho compulsório. É difícil, contudo, saber se Nabuco imaginava que, mais de 130 anos após a eliminação do labor escravo, o país ainda se depararia com a situação descrita na inicial, a qual, diga-se de passagem, restou incontroversa: bloqueio de duas canções porque fazem referência à entidade de matriz africana, Exú. Lembra-se, nesse sentido, que conforme aponta o sociólogo Reginaldo Prandi, Exú é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele orixás e humanos não podem se comunicar (Mitologia dos Orixás, 2001, p. 20). Trata-se, pois, de entidade fundamental em uma mitologia, adotada no modo de vida de milhões de brasileiros. É certo que a ré afirma não ter praticado qualquer ilícito. Contudo, apesar de ser poderosa plataforma de rede social, dotada das mais diversas possibilidades tecnológicas para comprovar a irregularidade das condutas com quem contrata, não acostou um único elemento de prova para demonstrar o porquê do bloqueio contra a autora. Limitou-se a alegar fatos genéricos. Cabe lembrar, nesse aspecto, que, no atual quadro de globalização econômica-financeira, no qual os mercados encontram-se cada vez mais desregulamentados, muito se reclama do poder jurídico e político que os detentores do poder econômico têm alcançado, como se vivessem em uma simbiose com certos órgãos do aparelho estatal. O chamado Estado mínimo, tão defendido por certas empresas, seria, na verdade, o Estado maximamente ocupado por essas mesmas empresas. Tal circunstância, contudo, não pode ser legitimada pelo Judiciário, a quem cabe, acima de tudo, observar a isonomia e os direitos daqueles que se encontram em patamar social e econômico desfavorável perante o poder econômico. Cabe ao Judiciário proceder ao necessário, nos limites de suas atribuições constitucionais, impedir o Estado maximamente ocupado por empresas. Toda essa situação ganha especial relevo no caso em debate. Como se viu, o bloqueio impediu a propagação de mitologia de matriz africana, alvo de secular discriminação. Aliás, como lembra Reginaldo Prandi, na época dos primeiros contatos de missionários cristãos com os iorubás na África, Exú foi grosseiramente identificado pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje (Mitologia dos Orixás, 2001, p. 21). Ao bloquear as canções da autora, a requerida, ao final, legitimou exatamente essa intolerância histórica. Legitimou o que estudos sociológicos, inclusive os que se inserem no âmbito da Sociologia do Direito, enxergam como uma das mais perversas heranças da colonização baseada na escravização de países, como o Brasil: o quadro colonialista, o processo histórico que, como expressa Frantz Fanon (Os Condenados da Terra. 2005), condena determinados estratos populacionais à posição de objetos de dominação do homem branco. Tal legitimação se deu pela naturalização. Como se a prática colonialista concedesse à ré status superior de julgar mitologia não eurocêntrica, em uma sociedade onde as heranças escravocratas sobejam, sem maiores questionamentos pelas estruturas de poder político e econômico. Afinal, como aponta Rita Segato, o racismo, produto do colonialismo, opera de forma automática, de modo a não depender [...] da intervenção discursiva de seus atores e respondem à reprodução maquinal do costume, amparada em uma moral que já não se revisa (As estruturas elementares da violência: ensaios sobre gênero entre a antropologia, a psicanálise e os direitos humanos, 2025, p. 156). Por tudo isso é patente a irregularidade da conduta da empresa requerida. Cabe, pois, a ela, no caso dos autos, proceder ao desbloqueio requerido, tal como exige a boa fé contratual (art. 422 do Código Civil). Os danos morais são também devidos. Isso porque após a promulgação da Constituição Federal (artigo 5o, incisos V e X), não há mais dúvida de que o direito pátrio consagra a indenização por danos não patrimoniais em casos em que a vítima de um evento danoso é atingida como ser humano, independente de eventuais conseqüências econômicas. Como bem lembra Yussef Said Cahali, na realidade, multifacetário o ser anímico, tudo aquele que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral (Dano Moral, 2a edição, pp. 20/21). Ora, no caso dos autos, o cancelamento indevido contra a parte autora gerou, nesta, evidentes ofensas à sua autoestima, de pessoa que segue religião de matriz africana, tendo sido impedida de homenagear, pelo cantar, entidade essencial a seu saber religioso. Deve, portanto, a ré, nos termos do artigo 5o, incisos V e X, da Constituição da República, indenizar a autora. Cabe salientar que tais sofrimentos são evidentes e a demonstração de existência destes independe, realmente, de maiores comprovações, além das constantes nos autos. A propósito, é cediço que a melhor doutrina costuma afirmar que o dano moral dispensa prova em concreto, até porque, como bem esclarece o Prof. Carlos Alberto Bittar, não precisa a mãe comprovar que sentiu a morte do filho; ou o agravado em sua honra demonstrar que sentiu a lesão; ou o autor provar que ficou vexado com a inserção de seu nome no uso público de obra, e assim por diante (Reparação Civil por Danos Morais, Revista dos Tribunais,1993, p. 204). Em relação ao valor da indenização, insta anotar que, como é muito bem sabido, o Direito pátrio, nem mesmo após a entrada em vigor do Código Civil de 2.002, estabelece um critério único e objetivo para a fixação do quantum do dano moral. Cabe, assim, ao prudente arbítrio do juiz a fixação do respectivo valor, o qual, a toda evidência, deve ser moderado e, normalmente, leva em consideração a posição social da ofensora e do ofendido, a intensidade do ânimo de ofender, a gravidade e a repercussão da ofensa. Dessa forma, adotando-se os critérios acima expostos, é razoável fixar o quantum em R$ 8.000,00,
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